quinta-feira, fevereiro 24, 2011

QUATRO OLHOS - parte II


E nesse mundo cubículo em que os dias são instantâneos tal qual Doril ou benegripe, é comum que reine o tédio de fazer trilhões de coisas ao mesmo pequeno espaço de um segundo. São milhares e tão poucas! Tão poucas, tão nada...

Mas existem espaços que transcendem os 360º do relógio. Existem lugares em que há tantas coisas e pode-se contemplá-las em um único fechar de cílios sem que se perca qualquer detalhe. E mesmo assim, nesses lugares também reina o tédio em determinadas épocas. São tantas coisas e tão milhares! Tão tantas, tão tudo...

E naquele quintal de várias coisas o tédio vinha constantemente tentar cortar a cerca de arame farpado que cercava o imenso pomar de mangas fumegantes como estrelas caídas no chão de folha seca. O jovem sem nome, ainda, às vezes segurava dois ou tres arames para que a passagem do sujeito fosse mais fácil. Afinal, não se deve deprezar nenhuma companhia. E o tédio de vez em quando vai bem a calhar- Não sabe jogar xadrez, é verdade. Mas quem disse que o menino sabia?

E as rodas da bicicleta rodavam e ele perdia partes. Até que chegou a alegria em forma de recado: Simplicidade viera vê-lo, estava na igrejinha.

E na praça, no meio da missa quase uma premissa de história mal compreendida: Um diálogo (que vagamente será representado).
-Calendário, soube que foi na minha casa!
Sim, calendário. Este era seu nome, que não poderia ser dito por outra pessoa senão ela.
-Fui sim, mas você não estava lá. Aquela era sua vó?
-Era. Ela disse que ficou tão nervosa que entregou a minha toalha de banho para você enxugar as mãos sem querer.
Simplicidade estava bonita. Cabelos grandes de um loiro metálico bruto, natural; sardas que desapareciam; batom muito ralo e brilhoso nos lábios.

E foram tantos risos... Um fotógrafo que passava na festinha santa de cordões de luz tirou uma foto dos dois em um banco de cimento, e depois cobrou muito caro por duas 3 por 4: uma para cada um, como fez questão a moça de sorriso largo.

Quem diria: um Calendário e a Simplicidade. Só saem juntos em foto porque estavam ali , no canto em que havia muitas coisas de muitos detalhes e dava para sentí-los de um em um de uma só vez.

Ela, então, ficaria hospedada na casa vizinha até quando desse. O casal que morava ali brigava muito, estavam prestes a separar as escovas, as distancias e os órgãos sexuais. A mulher era tia dela, o marido era tio dele. E mesmo assim não eram primos.

E quando as noites chegavam e podia-se andar pelas estradas só os dois rumo à casa de algum parente, as conversas eram nostálgicas e esperançosas; o futuro era concreto em todas aquelas constelações de vagalumes que se misturavam às estrelas.

A simplicidade e o calendário no meio daquilo tudo, sentiam-se sós de um jeito único...

Mas foi de repente que o calendário com a praticidade de quem conta os dias deixou-a vermelha por uma pergunta escapada de um meio sorriso daqueles que mexem um só lado do rosto (o esquerdo).
-Já beijou algum lábio, Simplidade?
-(Silêncio)
-(Constelação)
-(As várias coisas que minavam em ambas as mentes)
-Nunca!

E naquela mesma noite os lábios se tocaram e quatro olhos voltaram-se para dentro, para a parte interior que abriga a calma. E eram tudo: pernas, olhos castanhos com verdes abrasileirados, eram braços unidos, eram tronco com tronco, eram árvore, eram alma - no singular como se ama. É de bom tom advertir, porém, que o calendário já havia beijado outros beijos, até mais longos que este. Mas em sonho descobriu que foi o primeiro em que seus olhos eram quatro de uma só vez e que suas mais profundas entranhas eram outras entranhas assim compartilhadas.

Um comentário:

A. de Lima disse...

É, irmão, eu nunca cansarei de dizer o quanto sua 'prosa simbolista' me fascina. É algo realmente possuidor de uma literariedade fantástica.

Passagens como "E naquela mesma noite os lábios se tocaram e quatro olhos voltaram-se para dentro, para a parte interior que abriga a calma"

ou como o diálogo "-Já beijou algum lábio, Simplidade?
-(Silêncio)
-(Constelação)
-(As várias coisas que minavam em ambas as mentes)
-Nunca!"

são além de surpreendentes, originalíssimas, o que traça com perfeição seu estilo. E isso me deixa pra lá de orgulhoso.

Por fim, "Quem diria: um Calendário e a Simplicidade. Só saem juntos em foto porque estavam ali , no canto em que havia muitas coisas de muitos detalhes e dava para senti-los de um em um de uma só vez."

Isso foi maravilhoso, meu velho!
Dá pra dar uma aula de figuras de linguagem só com esse texto! Fabuloso, fabuloso mesmo!

Abração!