domingo, agosto 21, 2011

DAS COISAS


    
 
   Existem coisas que se explicam naturalmente; seus diversos significados de fato muito poéticos, encarregam-se de dispensar qualquer palavra. E há quem diga que são essas coisas de mil significados que falam mais que mil palavras juntas ou desconexas, artísticas ou não.
   
     Mas existem coisas que necessitam de entrelinhas claras. Para estas qualquer palavra é pouco, porque qualquer palavra fala delas um pouco. Estas não foram nem são entendidas - por quem lê, quem ignora e quem escreve.
     
      E caso me perguntassem o que é mais importante: os universos que escondem situações ou as situações que escondem universos, minha resposta seria ∞/2.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Então veja você mesmo


  A mesma faca que sangra é a que corta e divide o pão. Chora-se de emoção ou de dor, porém, veja: é a mesma lágrima! A ciência cura e mata de uma só vez, protegida por uma única face. Mas, olhe: entre isto e aquilo existem escolhas. E veja o mundo como está!
  Só então veja você mesmo. Decida-se, aventure-se em viver, existir e escolher. Corte sempre o pão, chore o quanto tiver de chorar e cure o que tiver que ser curado. Então olhe para você mais uma vez e estranhe-se.
  Viver é ser capaz de eclodir e implodir constantemente. Entre o inspirar e o expirar está qualquer coisa - e qualquer coisa é mesmo muito.
  Perceba: pão repartido já é pão multiplicado, qualquer lágrima é dádiva para qualquer coisa, e a cura para todos os males é respirar a garantia de que todos respirem. E garanta a pacificidade de um sorriso em qualquer boca.
  Então seja você mesmo.

sábado, agosto 13, 2011

QUATRO OLHOS - final


Nenhum amor de bolso é decisivo. E nenhum amor desesperado acontece de fato.

Verdade seja dita: Simplicidade era, para o Calendário, um amor líquido, de bolso. Daqueles que derretem ainda mais quando faz sol, e escorrem como suor pelo corpo quente... Vocês não sabem o quanto é difícil guardar as coisas simples.  E os bolsos furam.

Do mesmo modo, e de um modo diferente, o Calendário era, para a Simplicade, um amor pulsante, ideal, antigo. Bem se sabe, platonismos e exageros não acontecem  porque se tornam o que há de mais importante na vida. A própria vida, então, se encarrega de que não aconteçam senão no mundo ideias.

Mesmo assim, o amor, sem predicativos, aconteceu mais uma vez entre os jovens.  Ela estava de férias na casa do Calendário em Pequenograndópoles. Os dois se divertiam sempre que possível. Lavavam a louça juntos, passeavam e compravam pão. Coisa de primos ou irmãos -duas coisas que quase não eram.
Simplicidade, que achava aquilo tudo fantástico demais, não hesitou em dizer sim quando o Calendário lhe chamou para ir ao cinema.

E os dois foram como duas folhas que se deixam carregar uma pela outra em meio ao vento. Lembraram, com muito pudor, dos beijos que de quatro olhos deram.
- Você, logo depois que foi embora, começou a namorar com aquela menina...
- Mentira!
-Foi sim. E o que mais me doeu foi saber que você tinha ido sem me dar um beijo de mais nunca.
Calendário tinha pavor de mais nuncas, como todo ser vivo que se preze.  Mas naquele mesmo dia, durante o filme, eles deram mais um beijo, sem nenhum olho. Apenas dois que logo se abriram.

Simplicidade voltou para sua terra, e durante um mês mais ou menos cobrou as fotos da viagem ao menino. Mas calendário era um ser vivo, apenas, e colocava todos os empecilhos possíveis para olhar em profundidade para o que quer que fosse. Pensou que revelar as fotos lhe tomaria muito tempo, e quando tentou o computador estava quebrado. É verdade que isso não é desculpa, mas ele era só um ser vivo. Tecnologia é para as máquinas.

Os dois então se encontraram mais uma outra vez em uma festinha de bairro. Ele com dor de cabeça, ela muito bonita.

Mas foi na véspera de um carnaval, com uma orquestra de frevo, que os dois se viram para mais nunca. Ela estava estranha, ele namorando outra.

Poderia dizer que ela sorriu e o abraçou, depois quis passear com outro homem perto do menino, mas não seria de todo verdadeiro. 

Acontece que meses depois, uma série de mentiras encontraram o Calendário em uma certa tarde.A primeira notícia foi: Simplicidade estava muito mal, hospitalizada. A segunda tratava da gravidade do seu estado. A causa ninguém sabia, mas as horas eram poucas.

A primeira verdade, ainda eufêmica, foi noturna. Ela estava morta desde a noite anterior. Foi morta e pronto. Os detalhes são tantos e tão controversos. São tantos e tão poucos. Carecem de provas porque Simplicidade carecia de dinheiro e de influencias. Alguns dizem que ela sofreu abuso, e que de um tiro só, a poucos metros de casa, foi morta. Sem gritos, sem nada.

Que céu é esse que agora é vermelho? Que mundo é esse em que os anjos são mortos dentro das próprias nuvens?

As lágrimas dele são hoje mais salgadas. Dizem que um pacote de fotografias foi encontrado em uma lápide de azulejos desiguais que não tem nome, nem foto, só um endereço: mais uma entre tantas, misturadas, no cemitério dos que carecem. E padecem. Apenas.